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Pelo mundo

quarta-feira, 6 de janeiro de 2010

Malba Tahan - Lendas árabes


O LIVRO DO DESTINO

Certa vez — há muitos anos — quando voltava de Bagdá, onde fora vender uma grande partida de peles e tapetes, encontrei num caravançará, perto de damasco, um velho árabe de Hedjaz que me chamou, de certo modo, a atenção. Falava agitado com os mercadores e peregrinos, gesticulando e praguejando sem cessar; mascava constantemente uma mistura forte de fumo e haxixe, quando ouvia de um dos companheiros uma censura qualquer, exclamava, apertando entre as mãos o turbante esfarrapado:

— Mac Allah! Ó muçulmanos! Eu já fui poderoso! Eu já tive o destino nesta mão!

— É um pobre diabo — afirmavam alguns — Não regula bem do miolo! Allah que o proteja!

Eu, porém, confesso, sentia irresistível atração pelo desconhecido de turbante esfarrapado. Procurei aproximar-me dele discretamente, falei-lhe várias vezes com brandura e, ao fim de algumas horas, já lhe havia captado inteiramente a confiança.

Os caravaneiros me tomam por doido — ele me disse uma noite, quando cavaqueávamos a sós — Não querem acreditar que já tive nas mãos o destino da humanidade inteira. Sim, senhor: o destino do gênero humano.

Esbugalhei os olhos, assombrado.

Aquela afirmação insistente, de que havia sido senhor do Destino, era característica do seu pobre estado de demência.

O desconhecido, porém, que parecia não perceber os meus sustos e desconfianças, continuou:

— Segundo ensina o Alcorão — o livro de Allah — a vida de todos nós está escrita — Maktub! — no grande “Livro do Destino”. Cada homem tem lá a sua página, com tudo o que de bom ou de mau lhe vai acontecer. Todos os fatos que ocorrem na terra, desde o cair de uma folha seca até a morte de um Califa, estão escritos — estão fatalmente escritos — no “Livro do Destino”!

E sem esperar que o interrogasse, prosseguiu meneando a cabeça dolorosamente:

— Salvei das mãos do cheique Abu Dolak, depois de uma “razzia” terrível, que esse impiedoso beduíno fizera num acampamento da tribo dos Morebes, um velho feiticeiro que ia ser enforcado. Esse feiticeiro, em sinal de gratidão, deu-me um talismã raríssimo que possuía uma pedra negra, pequenina, em forma de coração, encontrada, anos antes, dentro do túmulo de um santo muçulmano. E essa pedra maravilhosa permitia a entrada livre na famosa gruta da Fatalidade, onde se acha — pela vontade de Allah — o Livro do Destino. Viajei longos anos até o alto das montanhas de Masirah, para além do deserto de Dahna, a fim de alcançar a gruta encantada. Um djim — gênio bondoso que estava de sentinela à porta — deixou-me entrar, avisando-me, porém, de que só poderia permanecer na gruta por espaço de poucos minutos. Era minha intenção alterar o que estava escrito na página de minha vida e fazer de mim um homem rico e feliz. Bastava acrescentar com a pena que eu já levava: — “ Será um homem feliz, estimado por todos; terá muita saúde e muito dinheiro!” Lembrei-me, porém, dos meus inimigos. Poderia, naquele momento, fazer grande mal a todos eles. Movido pelos mais torpes sentimentos de ódio e de vingança, abri a página de Ali Bem – Homed, o mercador. Li o que ia suceder, no desenrolar da vida, a esse meu rival e acrescentei embaixo, sem hesitar, num ímpeto de rancor: — “ Morrerá pobre, sofrendo os maiores tormentos!” Na página do cheique Zalfah el – Abari gravei, impetuoso, alterando-lhe a vida inteira: — “ Perderá todos os haveres; ficará cego e morrerá de fome e sede no deserto!” E assim, sem piedade, ia ferindo e atassalhando todos os meus desafetos!

— E na tua vida? — indaguei, mirando-o com surpresa — Que fizeste, ó caravaneiro, na página que o Destino dedicara à tua própria existência?

— AH! Meu amigo! — atalhou o desconhecido, contorcendo as mãos, desesperado — Nada fiz em meu favor. Preocupado em fazer o mal aos outros, esqueci-me de fazer o bem a mim mesmo. Semeei largamente o infortúnio e a dor, e não colhi a menor parcela de felicidade. Quando me lembrei de mim, quando pensei em tornar feliz a minha vida, estava terminado o meu tempo. Sem que eu esperasse, me surgiu pela frente um “efrite” — gênio feroz — que me agarrou fortemente e, depois de arrancar-me das mãos o talismã, me atirou fora da gruta. Caí entre as pedras e, com a violência do choque, perdi os sentidos. Quando recuperei a razão, me achei ferido e faminto, muito longe da gruta, junto a um oásis do deserto de Omã. Sem o talismã precioso, nunca mais pude descobrir o caminho da gruta encantada das montanhas de Masirah!

E concluiu, entre suspiros, com voz cada vez mais rouca e baixa:

— Perdi a única oportunidade que tive de ser rico, estimado e feliz!

Seria verdadeira essa estranha aventura?

Até hoje ignoro. O certo é que o triste caso, do velho árabe de Hedjaz, encerrava profundo ensinamento. Quantos homens há, no mundo, que, preocupados em levar o mal a seus semelhantes, se esquecem do bem que podem trazer a si próprios . . .


Fim

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